
Foto: Fellipe Sampaio /STF
Um laudo pericial solicitado por A Investigação confirma que o relatório apresentado como fundamento para a operação de busca e apreensão contra empresários bolsonaristas, em 23 agosto de 2022, foi produzido dias depois da ação já ter sido executada. O documento, atribuído ao delegado Fábio Alvarez Shor, aparece datado de 19 de agosto de 2022, mas os metadados revelam que o arquivo PDF só foi gerado em 29 de agosto — seis dias após a Polícia Federal cumprir os mandados expedidos pelo ministro Alexandre de Moraes.
A perícia identificou ainda que o relatório não possui assinatura digital qualificada (ICP-Brasil). As duas rubricas de Shor inseridas no documento são graficamente idênticas e se comportam como imagens sobrepostas, caracterizando o que os peritos chamam de transplante digital de assinatura. “Trata-se de antedatação e ausência de autenticação inequívoca”, conclui o parecer.
A operação de 23 de agosto atingiu nomes de peso do empresariado, entre eles Luciano Hang (Havan) e Meyer Nigri (Tecnisa), com bloqueio de perfis nas redes sociais, apreensão de celulares e quebras de sigilo bancário. A medida foi deflagrada a partir de uma reportagem publicada dias antes pelo portal Metrópoles, que expôs mensagens privadas do grupo de WhatsApp “Empresários & Política”.
Em audiência no Senado na última terça-feira, 2, o ex-assessor de Moraes no TSE, Eduardo Tagliaferro, afirmou ter recebido ordens para confeccionar relatórios com data retroativa, além de mapas mentais ligando empresários a supostos financiadores de atos antidemocráticos. Segundo ele, a pressão veio do juiz instrutor Airton Vieira, braço-direito de Moraes, “para construir uma história” que desse aparência de legalidade à operação.
As declarações convergem com os achados técnicos: um documento que deveria ter sido produzido antes da operação do dia 23 apresenta data interna de 29 de agosto.
O relatório pericial
O laudo foi solicitado por A Investigação e produzido pelos peritos Reginaldo e Jacqueline Tirotti, reconhecidos como alguns dos maiores especialistas do país em perícia digital e documentoscopia. Com décadas de experiência em análises para o Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, os dois têm formação sólida em tecnologia e criminalística e atuam justamente na detecção de fraudes em arquivos eletrônicos.

Foto: Reprodução
O objeto do exame foi o PDF “Representações PF – Pet. 10.543”, baixado diretamente do site do STF. Trata-se do documento atribuído ao delegado Fábio Alvarez Shor, apresentado como fundamento para a operação de busca e apreensão contra empresários bolsonaristas em agosto.
Poucos dias depois da ação, em 29 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes decidiu retirar o sigilo da Petição 10.543. Ele alegou a existência de “inúmeras publicações jornalísticas contraditórias” sobre a decisão original e, ao liberar parte dos autos, tornou públicas as representações da Polícia Federal e a manifestação do juiz instrutor que vinculava o caso dos empresários aos inquéritos das fake news e das milícias digitais.
Os peritos validaram a integridade do arquivo e extraíram os chamados metadados — informações invisíveis para o usuário comum, mas que registram a “impressão digital” de um documento, como a data exata de criação, o programa usado e alterações posteriores. O resultado foi categórico: embora o texto traga a data de 19 de agosto de 2022, o PDF só foi efetivamente gerado em 29 de agosto, às 14h55 — seis dias depois da operação já realizada.
Outro ponto levantado foi a questão da assinatura digital. Em documentos oficiais, a lei prevê o uso de certificados emitidos pela ICP-Brasil, que funcionam como uma identidade eletrônica e garantem a autoria do signatário. No caso do relatório, não havia essa certificação. As duas assinaturas de Shor, localizadas nas páginas 12 e 18, eram cópias gráficas idênticas, aplicadas como imagem sobre o texto — procedimento conhecido como transplante digital de assinatura, prática comum em manipulações de arquivos.
Por fim, o laudo conclui que houve antedatação, ou seja, a atribuição de uma data anterior à efetiva produção do documento. A ausência de certificação digital e o uso de assinaturas transplantadas impedem comprovar de forma inequívoca a autoria do relatório. Em termos práticos, o documento que embasou uma das operações mais polêmicas do processo eleitoral de 2022 apresenta inconsistências formais e temporais que comprometem sua legitimidade.
Rede informal de informações
Reportagens anteriores de A Investigação já haviam revelado que os materiais usados para reforçar a decisão de Moraes vieram de uma rede paralela de informantes. Conversas obtidas pela Vaza Toga mostram a jornalista Letícia Sallorenzo, conhecida como “Bruxa”, repassando prints e até a exportação integral do grupo dos empresários ao gabinete do TSE na noite de 27 de agosto. O objetivo, segundo mensagem dela, era “sossegar o amigo” — em referência ao ministro.
As mensagens tinham origem em uma fonte infiltrada no grupo “Empresários & Política”, identificada por nossa apuração como o jornalista Lucas Mesquita, que hoje ocupa cargo comissionado no governo Lula. Foi ele quem extraiu os conteúdos privados que acabaram abastecendo diretamente o gabinete de Moraes.
As conversas ainda revelam a proximidade de Letícia com o círculo íntimo do ministro: ela própria sugeriu acionar a esposa de Moraes, Viviane Barci, para ganhar tempo na entrega do material. A jornalista se apresentava como amiga de Viviane — tanto que o próprio contato dela estava salvo nos celulares como “amiga da esposa do ministro”. Em outro momento, perguntou se o celular de Meyer Nigri, apreendido pela PF, estava sob custódia de uma “PF confiável”, chegando a sugerir que Tagliaferro colocasse “as mãos no aparelho”. O diálogo expõe a confiança de que havia um circuito paralelo de agentes alinhados ao ministro dentro da corporação.
O repasse foi feito fora de qualquer cadeia de custódia formal, sem perícia ou autos de apreensão, violando normas do Código de Processo Penal. De acordo com o advogado Richard Campanari, da Abradep, a ruptura da cadeia de custódia torna o relatório nulo de pleno direito. “Prints de WhatsApp entregues informalmente a um gabinete ministerial, sem perícia oficial, não oferecem garantia de autenticidade. Criar documentos posteriores e datá-los como anteriores pode configurar falsidade ideológica e abuso de autoridade”, afirma.
A “antedatação” identificada na perícia reforça a denúncia de fraude processual apresentada por Tagliaferro. Caso seja confirmada a ciência do ministro sobre as irregularidades, as consequências podem ir da nulidade dos atos à responsabilização penal e até a crime de responsabilidade.
Em manifestação de agosto de 2022, a então vice-procuradora-geral Lindôra Araújo apontou a fragilidade do caso e avaliou que as mensagens atribuídas aos empresários não configuravam crime, tratando-se de opiniões em ambiente privado, ainda que de mau gosto ou radicais, protegidas pela liberdade de expressão. Ela considerou desproporcionais medidas invasivas como buscas, bloqueios e apreensões baseadas apenas em prints sem cadeia de custódia e em uma reportagem jornalística, e defendeu o arquivamento da Petição 10.543 por ausência de justa causa. Na mesma época, o procurador-geral Augusto Aras demonstrou irritação com a operação, avaliando em conversas reservadas que a decisão de Moraes poderia prejudicar esforços de harmonia entre Executivo e Judiciário para conter a escalada de atritos institucionais.
A Investigação